As manifestações pelo Brasil, na visão de Leonardo Boff
“Por que os movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muitas são
as razões. Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do mundo
me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se
saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive
pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam
o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da bolsa família,
da luz para todos, da minha casa minha vida, do crédito consignado; ingressou
na sociedade de consumo. E agora o que? Bem dizia o poeta cubano Ricardo
Retamar: “o ser humano possui duas fomes: uma de pão que é saciável; e outra de
beleza que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura,
reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais
como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não
foi atendida adequadamente pelo poder publico seja do PT ou de outros partidos.
Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não em último lugar,
a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades
sociais que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse
fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência
de cidadania e de democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente
desiguais como a nossa, é meramente formal, praticada apenas no ato de votar
(que no fundo é o poder escolher o seu “ditador” a cada quatro anos, porque o
candidato uma vez eleito, dá as costas ao povo e pratica a política palaciana
dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo
desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes
projetos que as afetam e que não são consultadas para nada. Nem falemos dos
indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das
hidrelétricas.
Esse fato das multidões
nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo
Pontes escrita em 1975, ”A Gota d’água”. Atingiu-se agora a gota d’água que fez
transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno ao
dizerem no prefácio da peça em forma de livro: “O fundamental é que a vida
brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público
brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta
tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos
não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte
de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer
contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais
democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação
social.
Esse grito não pode
deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra
daqui para frente”.
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